terça-feira, 1 de junho de 2010

Relato de Parto - Jobis, Vi e Mariles Estela

"Engraçado que eu sinto a escrita desse relato com um misto de compromisso, necessidade, compulsão e... Encerramento. Como se um ciclo da minha vida só pudesse ser fechado quando eu escrevesse esse relato e enviasse. Para quem conhece toda a "missa daqui de casa" e quer ver só o relato, pode procurar por... Sei lá, por quê! :-) Para quem não sabe, bora lá.

Jobis, 26, casada com o Vi, ambos deficientes visuais, morando em Guaxupé. A gravidez do  nosso primeiro filho aconteceu após 3 abortos espontâneos e foi um evento muito conturbado do ponto de vista físico e do emocional. Anoto apenas que essas conturbações nada tinham a ver com o bebê não ser bem-vindo. Ele era... E muito.

Na época eu tentava me descobrir como mãe e me "apossar" da nossa família, da nossa autonomia, da nossa independência física e emocional. Esse processo foi alavancado e potencializado pela vinda do Estêvão, e confesso que me envolveu tanto, que eu conseguia olhar para pouco mais. Eu queria parto normal porque era normal, porque seria mais fácil assumir meu filho com um e porque eu queria estar lá quando ele nascesse. Mas eu simplesmente queria um parto normal, entendem? Pré-natal sem problemas para o bebê, 37 semanas e 9 dias, e de repente eu começo a ficar "estranha". As contrações de prodromos ficam mais intensas e a bolsa rompe. A médica e eu já tínhamos acertado o que fazer nessas condições: hospital imediatamente, "é claro". O ponto é que, para contar sobre o parto da minha filha, dois anos depois, eu tenho que me deter aqui, nesse preciso momento. Eu simplesmente preciso voltar ao líquido escorrendo aqui na mesma sala em que escrevo, dois anos e dois meses mais tarde; eu tenho que voltar à impressão úmida e morna, ao relaxamento geral que me acometeu, à impressão intensa como poucas de que meu filho estava chegando e que tudo começaria para nós, de verdade. Eu tenho que lembrar do vestido simples, o mesmo que eu usei no início do trabalho de parto aqui em casa e, sobretudo, da impressão terrificante de que eu tinha feito "tudo errado". Por algum motivo, eu não deveria estar indo ao hospital; por algum motivo, eu não deveria estar aonde eu estava; por algum motivo, eu tinha tomado o caminho errado, e "algo podia acontecer"; por algum motivo, eu não estava segura... E o meu filho também não. Isso veio como uma revelação, mas não de fora, que eu pudesse atribuir à influências externas de qualquer ordem; veio de mim, de um lugar instintivo e recôndito, de compartimentos secretos da minha alma e do que eu tinha de mais meu, de mais visceral. E eu estava presa. Presa pela minha ignorância mais que pelas minhas escolhas. Naquele momento, eu não tinha
escolha. Só devia proceder a tricotomia, revisar a malinha minha e do meu bebê e ir para o hospital. Para falar do parto da Mariles, eu tenho que voltar àquela meia hora no banheiro, a cada deslizar da lâmina durante a depilação significando rios de percepções instintivas codificadas e avassaladoras e do medo sem nome e sem defesa. Eu não tinha medo da dor do parto. Aquela ia doer e pronto. Eu tinha medo daquilo que eu sentia e que sabia que não podia contestar, embora jamais pudesse explicar.
Então eu tive que ir para o hospital e o nascimento do meu filho foi uma pantomima, se é que posso me expressar assim. Sete centímetros de dilatação (alguns disseram que eram 5 ,, outros que eram 9, francamente, jamais houve um consenso, então eu fico com o número do meio) viraram uma cesárea sem anestesia por causa do mecônio. Como se relata uma cesárea sem anestesia? Não se relata. Simplesmente não pegou a anestesia, a coisa é autoexplicativa.
Engraçado que eu busquei imagens para descrever aqui a dor do Parto da Mariles e não encontrei lembrança de nenhuma dor que me apavorasse, mesmo agora... Mas a cesárea, dois anos depois, ainda está vívida em mim, seja pela impressão sem descrição, seja pela certeza absoluta de que eu não precisava passar por aquilo, nem meu filho. E mais forte que a dor, foi a impressão de que, se eu soubesse, se eu isso e eu aquilo, poderia ter evitado. Poderia ter nos protegido. Sobretudo, poderia ter protegido o nosso pequenininho. O que mais doeu, então, não foi a consciência plena de que seria rasgada sem anestesia, antes de tudo começar, e me preparar para isso; não foi a dor do bisturi elétrico atravessando meu corpo e meu útero; não foram os puxões de cabelo  do anestesista, para que eu não desmaiasse; foi o sentimento atroz de que eu tinha sido incapaz de proteger o meu filho. Os exames, o pré-natal cuidadoso, nada disso protegeu Estêvão. E eu soube que aquilo era desnecessário, e contra tal tipo de revelação, nenhum argumento da medicina tradicional tinha qualquer chance.
Tínhamos já regressado de Ribeirão quando eu disse ao meu esposo que a próxima vez ia ser diferente. Ele não entendeu a princípio. Penso que ele, como todo o mundo de dentro da matriz, achava que tudo fora uma fatalidade. Então eu expliquei o que sentira e que, desde então, iria trabalhar pra ter um parto diferente, sim, porque nós teríamos outro filho.
Os caminhos foram se mostrando aos poucos. Primeiro a Parto Nosso, e a vontade de economizar para parir perto da minha terra natal, com a doutora Melania. Foi assim por um bom tempo, embora jamais tivéssemos falado com ela. A ideia era economizar para ter dinheiro para viajar para a Paraíba, a fim de ir ao Recife ter parto com a Dra Melania. Então, um dia estávamos ouvindo música. Era "menina", do "teatro mágico", e então nós sentimos que a hora de tentar outro bebê era chegada. Antes um aborto espontâneo e depois, a boa-nova... Grávida, afinal. Daí o plano de parto foi ficando cada vez mais próximo. Primeiro, Belo Horizonte; depois, São Paulo... E enfim... Eu não lembro com quantas semanas de gravidez eu estava quando pensamos que o melhor seria procurar o lugar mais perto daqui com assistência humanizada. Lembro que eu estava procurando no Google e coloquei a chave "doula Ribeirão", como mais uma das muitas cidades que ficam perto daqui... E então apareceu a Léo. Acabei passando "óleo de peroba" e ligando para ela naquele mesmo dia. Pusemo-nos em contato e, algum tempo mais tarde, marcamos um encontro em Ribeirão.
De lá eu saí com uma certeza e uma dúvida: a certeza era de que ela estaria comigo no parto. Engraçado que não foi nada do que ela disse que me deu essa certeza, ao menos, nada relacionado a mim. Foi quando estávamos na porta de uma sala grande, na qual ela ministraria um curso de parto a que gostaria que eu assistisse. Algo no jeito de ela descrever a sala e o que faria durante o curso, fez com que eu sentisse que ela estaria conosco até o fim e que era a pessoa perfeita para isso... A dúvida... Bem, ela falou em parto domiciliar. Não sei quanto ela própria levou a sério o que sugeriu naquele primeiro momento, mas eu pensei... Bem, se vamos nos meter nisso, por que não apostar todas as cartas? Eu lembrava como era chato ter contrações naquela mesa plana, com os braços amarrados e sem condições de me mexer. Francamente, não duvido que a maior parte da dor que tive naquela época se deveu mais à posição que à questões fisiológicas do próprio ato de parir. Quando voltei para casa, procurei meu medo de um parto domiciliar e não encontrei. Ao menos, não aonde presumivelmente estaria.
Lá pelas bandas de março, a Léo me ligou e, dentre outras coisas, falou da Helena, que trabalhava com ela. A ideia era ela vir doular o nosso parto com a Léo. O meu raciocínio era quase pueril: se eu confiava na Léo e a Léo confiava na Helena, então não havia porque me opor. A parteira é que foi mais difícil encontrar, uma vez nos decidimos todos pelo parto domiciliar. Precisávamos de uma pessoa que topasse um parto domiciliar pós-cesárea e viajar para isso. Um monte de questões entravam em tela, tais como agenda, só para começar. Foi aí que entramos em contato com a Ivanilde. Eu liguei para ela em um dia, de tarde, enquanto ela voltava de uma farmácia. Conversamos, eu lhe expliquei toda a situação e nos acertamos. Se eu arcasse com os riscos de esperar, ela arcaria com os de viajar; e se nós chegássemos até o momento de ela vir para fazer o parto, era porque Deus achara que era o melhor para todo o mundo. A coisa era tão simples e transparente, que só podia ser a coisa certa.
Outra pessoa que esteve lá, na hora P, foi a minha mãe. No plano original de parto, ao menos, o plano que permaneceu até a ideia de um domiciliar se firmar, era que eu iria para Ribeirão perto da hora de parir com o Vi e minha mãe ficaria com o Estêvão. Acontece que ela disse que não viria, e isso colocou o parto domiciliar no primeiro lugar da fila de hipóteses viáveis. Durante toda a gravidez nós nos mantivemos em contato, e sua opinião sobre sua própria vinda e sobre o parto em si sofria variações estonteantes. Na hora H, porém, quando eu já estava com algumas contrações, ela disse que vinha. Confesso que isso me inquietou bastante. Confesso que eu não sabia se, depois de tantas idas e vindas, ela estaria pronta para permanecer em um parto domiciliar sem ser um elemento desestabilizante... E confesso, também, que eu estava errada. Ela foi simplesmente perfeita, irretocável, maravilhosa. Não que ela jamais tenha sido tão boa antes, mas o saber quanto isso lhe custou até o nascimento da minha filha, faz que o seu êxito sobre si mesma tenha contornos ainda mais dignos e incríveis, para mim. E então chegamos ao marido, um ponto tão debatido quando a questão é um parto domiciliar. Quando tivemos tudo do primeiro nascimento, o Vi estava numa de me compensar e aceitaria qualquer ideia que eu desse. Depois, ele aceitaria qualquer ideia que parecesse mais segura. Mas quero explicar que as coisas mudaram quando eu engravidei. Quando você tem uma segunda gestação, muitas coisas mudam. Na cabeça do Vi, ele não queria mais parto nenhum. Acho que em alguns momentos, ele não queria era filho nenhum. Não havia rejeição em relação a Mariles em si, mas o medo de que um filho significasse o risco de outro parto, de perder a esposa, de amar alguém como se ama a um rebento e depois perdê-lo, como quase aconteceu com o Estêvão. Então, por alguns meses, nós andamos separados nessa questão: enquanto eu queria porque queria um processo diferente e para isso tentava me informar e preparar, o Vi queria não estar ali. Ele queria a segurança do conhecido e o parto era mais uma ameaça que qualquer outra coisa. Em todo esse transe, ele nunca me impediu de fazer o que estava fazendo, mas também deixou muito claro que não esperasse mais dele que simplesmente pagar. Sim, ele aceitava o meu parto domiciliar, mas ele não ansiaria por ele; sim, ele achava, o que nunca entendi, que parir em casa era mais seguro que fazê-lo no hospital, mas não significava que ele estivesse disposto a ler livros, relatos e opiniões em listas.
Com o tempo e o amadurecimento eu passei a aceitar o ponto emocional dele e a não pressionar, e na medida em que eu fazia isso, devagar, muito devagar, ele foi se aproximando... Mas a "aproximação total" não aconteceu até a hora P, quase que literalmente. Antes daquele momento, ele aceitaria um parto domiciliar, mas não brigaria por ele comigo.
Todos os elementos expostos - gravidez anterior, parto domiciliar, pessoas envolvidas -, eu gostaria de fazer uma pausa para "combinar" uma coisa. Eu poderia fazer um relato bem mais curto e talvez bem mais fácil de escrever e de ler, mas não acho que isso adiantaria muita coisa. Penso que talvez o meu caso - distância, parto domiciliar, deficiência -, possa ser útil a outras pessoas, imagino... E acredito que a proporção da utilidade está na proporção dos detalhes, tanto físicos, quanto emocionais. Eu podia então escrever um relato limpo, direto, sem ondas. Mas então, não seria o relato do meu parto; seria uma versão açucarada, distorcida e talvez até menos rica e para não escrever um relato honesto, é melhor escrever relato nenhum. Então, em alguns momentos, eu vou falar de sentimentos meio estranhos que eu tive, impressões, idéias, medos, essas coisas. Gostaria de deixar claro, porém, que tudo isso veio da minha cabeça, do que eu sentia, da minha personalidade, da forma como o processo de parto agiu sobre mim. Do mesmo modo que eu não posso fazer um relato enxuto sentindo que faço um relato honesto, igualmente não posso falar dos meus sentimentos sem deixar absolutamente claro que eram apenas meus sentimentos. Isso posto, acho que podemos continuar.

Não estou certa sobre o marco do meu trabalho de parto. Quando estava com 36 semanas, as contrações de Braxton-Hicks estavam mais fortes e doloridas do que costumavam ser. Além disso, eram muito vistosas: qualquer um que estivesse olhando, reparava que aquilo era mais que o bebê mexendo. Foi por causa disso que a visita de "reconhecimento" da Léo e da Helena foi antecipada. As contrações estavam de dez em dez minutos quando fomos ao hospital, para avaliar. Lá ouvi algumas pérolas como "seu útero está "contraindo errado"" e foi dito que a ordem era tentar segurar até a "hora mágica" das 37 semanas, mesmo o ultra totalmente ok. Bem, acho que eles deviam estar certos, no final de tudo. E eu que hesitara grandemente em tomar o tal remédio que inibiria as contrações, passei a tomar como água... E não adiantou nada, como eu imaginei que seria, a propósito.
Desde aquele dia, exceto em uma ou duas ocasiões, as contrações não pararam. Quando a Ma completou 37 semanas, parei de tentar inibir. Parei de contar no relógio, também. Aquelas contrações, que começavam de baixo para cima, não eram contrações de parto, portanto, não havia porque perder meu tempo com elas...
Um dia - não lembro qual foi, mas lembro que liguei para Léo de madrugada -, a coisa mudou. Elas ficaram bem mais doloridas, consideravelmente mais, e definitivamente vinham de cima para baixo, agora, terminando com uma dorzinha no pé da barriga, que eventualmente irradiava para as costas ou para as pernas. Acho que era o começo da fase latente, porque elas jamais eram regulares quanto ao intervalo e a duração. Fosse como fosse, jamais passavam uma hora inteira sem vir, ao que me lembre agora. Minha política foi falar nelas o menos possível. Só passava os informes para a Léo, com medo de deixar passar algo importante. Na época eram informes simples, do tipo "tudo estável", ou um ou outro detalhamento ínfimo, quando algo havia para detalhar. Mas, pelo que parecia, eu bem podia ficar daquele jeito as 42 semanas, pelo que assumi que aquela intensidade de contração não nos levaria a lugar nenhum e parei de contar, simplesmente. Sabia que elas me acordavam a
noite toda, que não passavam se eu deitasse ou me banhasse na maior parte do tempo, mas isso não importava, ou, ao menos, eu tentava não me importar. Nessa época eu comecei a fazer cardiotocografia duas vezes por semana. Eu sei que existe uma corrente muito respeitável que não aconselha essa conduta, mas, no meu caso, eu senti que podia proporcionar isso a minha família. A cada vez que eu chegava em casa garantindo que o exame "jurava" que estava tudo bem com a Mariles, eles se sentiam mais confiantes e mais serenados. Claro que rolava uma pontinha de ressentimento pela palavra das máquinas ter mais peso que meus instintos, mas meu ego precisava ser mais forte que isso. Antes, bem antes de tudo isso, eu brincava com a Ana Cris que entraria em trabalho de parto às quatro da tarde.  Acho até que cheguei a dizer isso para a Léo, também. Bem, eu errei. Se contarmos o começo do trabalho de parto por quando eu senti que as coisas estavam realmente esquentando, então nós vamos parar na quinta, dois de julho. A primeira impressão que eu tive foi de calor. Muito, muito calor. Todos estavam de blusa de frio e eu estava de vestidinho sem manga, suando em bicas pela casa. A pressão estava em 12 por 8, insuficiente pra justificar tudo aquilo. Então vieram as contrações e, depois, frio, bastante frio, para em seguida voltar o calor. Isso não era normal. Liguei para a GO e ela me disse que era indício de trabalho de parto; liguei para a Léo e ela se decidiu por vir aqui para casa, com a Helena.
E aqui começa o meu "relato de sentimentos estranhos que tinham início e fim em mim mesma": as pessoas me perguntavam como eu estava com a ideia de esperar o pessoal chegar, possivelmente em trabalho de parto e eu dizia que estava ok com isso. Não estava mentindo. Esse nunca foi um ponto nevrálgico para mim, não mesmo... Mas houve um: eu tinha muiiiiiiiita vergonha. Muita mesmo. Quase paralisante. Pensava que era extremamente indelicado tirar uma pessoa do seu dia, da sua família, de tudo, assim, sem avisar. Uma indelicadeza quase imperdoável. Pode parecer engraçado agora, mas esse foi o meu principal ponto: o receio de incomodar. Lembro que quando a coisa apertava de madrugada, eu pensava: ai, meu Deus. Madrugada, não! Está bem, a Ivanilde até prefere vir de madrugada por causa do trânsito, mas é tão chato acordar as pessoas de madrugada! E aqui vale ressaltar, embora tenha ficado tácito, após o combinado lá de cima: nunca, em momento algum, qualquer das três fez qualquer referência a se sentirem incomodadas ou qualquer coisa assim. Jamais. Era uma coisa minha mesmo, talvez vinda da educação no sentido de ser extremamente deselegante ligar para alguém depois das dez da noite. Estou certa de que as três assumiram que receber ligações de madrugada ou até ter que viajar de madrugada estava incluído no pacote de atender um parto a distância.
Mas então a Má condescendeu nesse ponto e o trabalho de parto não iniciou de madrugada, mas às 3:45 da tarde. Eram 4:15, mais ou menos, quando liguei para Léo, e 10 da noite quando ela e a Helena vieram, após vencerem meus débeis argumentos de que "não era necessário". Lembro que naquela fase eu estava meio incoerente e foi o Vi quem ficou conversando com elas sobre os horários das contrações.
Agora outro "momento revelação": quando fomos ao hospital nas 36 semanas, uma coisa ficou clara para mim: que aquele não era um lugar seguro. Estou falando do que eu senti. Pode ser que eventualmente seja um lugar seguro, mas eu não senti isso. Senti, na verdade, que eu devia manter distância de lá, se quisesse um parto domiciliar. Naquela noite, para ser exata, eu senti que estava andando sobre uma linha muito fina. Se eu pendesse para qualquer lado, cairia em uma cesárea. Se eu fosse ao hospital com aquelas contrações, obviamente iria para o soro e teria 6 horas para dilatar 5 centímetros. Sem isso, era cesárea. Então o futuro estava claro a minha frente: eu não podia ir para o hospital. Fosse como fosse, teria que ficar em casa. Então o meu medo era muito simples: tinha medo de ligar para Ivanilde e ela sugerir que eu fosse ser avaliada no hospital, eu ir para lá e acabar ficando. Sim, claro que eu tinha bastantes argumentos para dizer não, mas, a sério, o trabalho de parto não é o melhor momento para a gente brigar. Está bem, tecnicamente é possível, mas não é como se você não estivesse em trabalho de parto. O outro ponto é que eu sabia que Vi e minha mãe estariam bem *desde que não tivesse nenhum discurso terrorista encima deles*. Eu podia perfeitamente ouvir pérolas como "olha, aproveita que está tudo bem ainda e faz uma cesárea! Pense na sua filha!" sem me alterar de fato, mas não estava totalmente certa de que minha família permaneceria imune a esse tipo de ataque. Então, sim, o hospital era um problema. E se ligar para Ivanilde significasse uma orientação para ir ao hospital, então esse também era um problema. Mas claramente eu tinha que ligar para ela de todo o jeito, especialmente quando as contrações continuavam noite a fora, quando a Léo entrava em contato da estrada, perguntando se eu já tinha ligado, quando o Vini ficava me pedindo para ligar e quando todo o bom senso do mundo dizia que eu tinha que ligar, ora bolas. Então, apesar do carro batido e de ter acabado de sair de outro parto, a Ivanilde veio... Graças a Deus pelos imensos favores... Helena e Léo chegaram perto das dez, e eu tive que esperar uma contração para lhes dar boa-noite. Não havia dúvidas: eram contrações de parto. Mas a minha ficha não tinha caído. Eu estava com medo de não ser. Passamos a noite inteira juntas as três, conversando, rindo, ouvindo música e eu tendo contrações. Elas eram razoavelmente doloridas, mas amplamente suportáveis. Agora estavam mais ou menos regulares, não como um relógio, mas mais ou menos, e a intensidade ia crescendo, crescendo. Ficamos nisso até que a Ivanilde chegou, entre às 4 e às 5 da manhã - não sei exatamente. E o que tínhamos? 1 cm e meio de dilatação e o diagnóstico de um "falso trabalho de parto". Eu não sabia aonde enfiar a cara. Me senti muito envergonhada, como se eu fosse um tipo de farsante. Senti ainda que meu corpo estava me traindo. "Caramba, se não é pra nascer ainda, não faz escândalo, ok?"
Estava irritada com todos aqueles tremores e suores, com as contrações que há semanas não me deixavam dormir direito, com o fato de aparentemente ser o centro de uma pantomima.
Helena e Léo sugeriram que eu tomasse banho e depois me fizeram uma massagem. Eu estava tudo que não podia estar: irritada, frustrada e envergonhada, tudo junto, enquanto as contrações de um centímetro e meio em 11 horas continuavam, como que fazendo chacota de mim. Foi aí que Léo cantarolou "ojalá" de Silvio para mim. Aqui cabe um parêntese: nós sentimos essa música de forma diferente: ela sente como uma afirmação de fé, de força; eu sinto como um exorcismo, como alguém que tenta expulsar alguma coisa. As duas interpretações são válidas, mas, naquele momento, eu não consegui deixar de sentir que estava acolhendo minha raiva, assumindo minha frustração, minha impotência, minha vergonha e tentando exorcizá-las como podia.
Depois da massagem, Léo tentou começar um relaxamento, mas não deu certo. "O que você prefere? Um campo, uma praia ou uma floresta?" Minha resposta interna e altamente irônica: "contrações que prestem ou uma noite decente". Resposta para ela: Ah, Léo, eu acho que tanto faz... Mas não pude deixá-la ir até ao fim. Não seria honesto. Ela estava tentando me relaxar e eu estava tentando fazer outra coisa. Claro que tudo aquilo estava dentro da minha cabeça e eu poderia facilmente fingir relaxava, enquanto continuava o trabalho de "ojalá", e então agradecer e deixá-la ir dormir... Mas seria desonesto demais e eu pensei que Léo conseguiria entender se eu pedisse para parar. Ela entendeu. Então eu fiquei sozinha, supostamente para dormir. Eventualmente eu fiz isso, realmente, mas não antes de terminar a história do "ojalá". Sim, eu estava irritada, sim, eu estava envergonhada, sim, eu estava frustrada e tinha que entender e aceitar isso. Naquele momento, proteger meu trabalho de parto significava ser honesta comigo, e eu não podia fugir, por mais desagradável que fosse sentir tudo aquilo durante as contrações. Estava quase afundada em um quadro patético de autodepreciação e comiseração quando percebi o que estava faltando... Mariles! Eu estava desconectada de Mariles! Eu não estava considerando  os sentimentos dela, as necessidades dela! Eu estava autocentrada demais para pensar que, se eu ia parir, Mariles ia nascer... E que eu podia fazer algo por ela enquanto isso. Talvez entrar em comunhão com minha filha fosse a chave. De modo que dormi cantando para ela dentro da minha cabeça, dizendo-lhe da porção de coisas bonitas que faríamos quando ela nascesse, contando as peripécias do seu irmão e as coisas engraçadas que nossa familinha vivera até ali.
Então tudo parou. Tivemos um dia sem contrações nem "contracinhas", que era como eu chamava àquelas que não resolviam nada. Fomos caminhar, tocamos violão, mas não engrenava. E quanto mais não engrenava, mais eu ficava com vergonha. Eu tentava relaxar, tentava esquecer do trabalho de parto, e realmente conseguia fazer isso quando nos entregávamos a algum divertimento, como o de caminhar e o de fazer música, por exemplo... Mas quando a diversão acabava e eu reparava que relaxar não tinha adiantado, os sentimentos ruins voltavam com força total. Acho que eu dormi naquela tarde. Só sei que às seis da sexta, estávamos no exame de toque. Acho que estávamos estagnados, ou tínhamos mais meio centímetro, não lembro ao certo. Só sei que a Ivanilde decidiu descolar a bolsa e eu concordei. E ficamos naquela. Casa meio estranha, clima meio estranho, mas eu achava que era mais impressões vindas de mim que do ambiente. O Vi teve que ir ao aniversário da mãe dele e eu fiquei muito triste: queria ele perto. Veja bem, não seria nada de mais, uma horinha, apenas, mas eu estava meio perturbada naquela altura. O que eu sentia e pensava estava totalmente embaralhado e eu não conseguia separar isso. O mais difícil era tentar alguma coisa com todo o mundo a minha volta pedindo para eu parar de pensar, porque o neocortex precisava ser desligado na hora do trabalho de parto. Eu entendia isso e concordava, mas simplesmente não conseguia parar de pensar, e o não conseguir parar com todos dizendo que eu devia e com as evidências científicas mostrando que eles estavam certos só me fazia sentir mais frustrada e incompetente. "Se seu cérebro não funciona, você vai esperar o que do seu útero?" "você não vai entrar em trabalho de parto e a culpa vai ser sua, porque não pôde desligar o seu cérebro". "Mas se eu desligar meu cérebro, como vou fazer para parir? Quero dizer, eu nunca fiquei sem pensar antes, então...?"
Para piorar, a Ivanilde explicou que, se por acaso não engrenasse até a manhã de sábado, Helena e Léo voltariam para casa. Sim, claro, seria fácil elas voltarem para cá, naturalmente eu ficaria muito bem assistida enquanto elas estivessem fora, mas aquilo só fez eu me sentir ainda mais envergonhada. Então elas viriam duas vezes aqui à toa, para um falso trabalho de parto? Como eu poderia confiar em mim, nos meus instintos, se por duas vezes tudo tinha falhado tão redondamente? Eu era o centro de uma pantomima e arrastava os outros para ela. E o que aconteceria se eu não entrasse em trabalho de parto até domingo, por exemplo? Uma hora Ivanilde também iria para casa, é óbvio. E o que eu faria? Recomeçaria tudo do zero a mais um alarme de trabalho de parto?
Aí soou um alerta vermelho na minha cabeça. Eu sabia no que dava ficar girando como louca em torno de variáveis imaginárias: eu ficava totalmente desgastada, perdia energias preciosas para lidar com a questão presente e, claramente, não chegava a conclusão nenhuma. Ficar girando assim em torno de hipóteses sem poder prever nem fazer nada a respeito era um veneno mental. E quer meu cérebro estivesse desligado ou ligado na hora do trabalho de parto, eu não podia me dar ao luxo de me desgastar sem necessidade, levando em conta que meu físico não estava em seus melhores dias desde o começo da gravidez.
Nesse momento todos estavam dormindo. Vi tinha já voltado do aniversário e descansava. Ivanilde, Helena e Léo estavam dormindo, junto com minha mãe. Estêvão, idem. As contrações estavam querendo voltar, eu achava, e eu daquele jeito não ajudaria em nada, se fosse efetivamente um trabalho de parto. Tentei me acalmar sozinha, mas não estava conseguindo. Todo mundo tinha se disposto a conversar comigo durante a noite, se eu precisasse, mas eu estava envergonhada demais para isso. De qualquer modo, eu acho que saberia o que cada um ia dizer. O Vi diria "para de pensar e dorme!"; a Helena provavelmente sugeriria a mesma coisa, mas com um pouco mais de palavras e gentileza implícita. A Ivanilde sugeriria que eu fosse dormir e tentasse relaxar, e a minha mãe talvez oferecesse mais chá.. E a Léo... Bem, eu achava que ela chegaria no ponto, que o meu ponto todo era vergonha. Mas como todo bom envergonhado, eu estava com vergonha de dizer quanto tinha vergonha, então chamá-la estava fora de questão também. Relaxar era sensato, mas eu não consigo empurrar uma questão para fora da mente sem a resolver. Então eu lembrei da Rebeca. Mandei uma sms para ela e conversamos. O papo de sempre: você foi feita para parir, o seu útero é perfeito, ela vai vir no tempo dela... E a pérola: Existem cerca de 300000 mulheres parindo nesse momento. Com certeza vai chegar um pouco de ocitocina para você. Era de tudo que eu precisava: da ideia de que havia uma legião de mulheres anônimas parindo comigo, e que, fatalmente, eu pariria também. Outra vez, simples e profundo demais para não estar certo. Deitei na cama e começava a afugentar as ideias de trabalho de parto perpétuo e não dilatação seguida de cesárea com a das 300000 mulheres parindo. Ora, se 300000 mulheres vão parir, por que eu seria a exceção? Claro, me abstive de tentar calcular quantas daquelas acabariam numa cesárea por falta de dilatação - eu também não sou sádica.
Aquela noite me ensinou uma coisa: eu jamais conseguiria desligar o meu cérebro. Tentar fazer isso era o que estava me travando, talvez, porque eu também acreditava que tinha que fazê-lo... Você não vira outra pessoa para parir. Cada um leva para o trabalho de parto aquilo que tem e o que é. Eu sou uma pessoa extremamente racional e quase que excessivamente teórica. Cedo aprendi que minha mente era minha maior fortaleza, meu mais seguro refúgio, o recurso que eu sempre levo comigo e que dificilmente me deixaria. Tentar voluntariamente abrir mão disso era agressivo e contraproducente, ao menos, para mim. Se eu queria parir, tinha que ser eu mesma. Se alguma coisa diferente acontecesse, teria de vir de um processo natural, como o próprio ato de parir o deveria.
Mais tarde as contrações apertaram e eu conversei com a Helena. Queria saber se era mais sábio dormir ou investir naquela "engrenada". Ela foi sábia: dorme. Se for trabalho de parto, não vai parar e você estará mais fortalecida. Com efeito, eu não dormia bem desde o princípio da gravidez. Entre crises recorrentes de asma e de insônia e cuidar de uma criança de dois anos que dormia mal, restou pouco tempo para dormir. O mesmo aconteceu com a comida. Então, de algumas semanas até ali eu estava comendo tanto quanto podia e dormindo também, consciente de que, quando a hora chegasse, as minhas reservas já estariam um pouco baixas. Na verdade, vendo em retrospectiva, a falta de energia foi o maior problema durante o trabalho de parto propriamente dito.
Tomei um banho com a Helena perto. Estava eu e as 300000 mulheres em trabalho de parto dentro do chuveiro. Enquanto isso, eu comecei a falar um monte de absurdos sobre as datas dos nascimentos do Kevo e da Mariles. Cômico, mas acho que a oxitocina começou a chegar para mim naquele momento. Passei a noite toda entre dormir, evocar um monte de ideias malucas e levantar para as contrações. Quando elas vinham automaticamente minha mente puxava uma imagem. A das 300000 mulheres ficou gasta dentro de poucas horas, mas eu tinha vários pensamentos e frases guardados para esse momento. Assim desfilaram junto com as ondas trechos de músicas, de conversas, de mensagens das listas, de livros de que eu gostava. Naquele dia pela manhã o Vi me chamara para ouvir com ele uma coisa. Era um trecho de "ave, Cristo!" e eu soube, quando ele fez isso, que ele estava inteiramente comigo, de modo que os trechos de "ave, cristo!" estiveram comigo também, até que se gastaram. Foi entre às seis e às sete que a Ivanilde entrou no quarto, atraída pelos meus gemidos durante as contrações. Eu estava tão imersa no trecho de "verbos", de Tim e Vanessa, "Tu escolhes os elementos / elaboras sentimentos / alfa e Omega dos atos", que nem percebi que estava gemendo. Meu corpo e minha mente estavam trabalhando juntos agora, mas tornavam-se cada vez mais dissociados. Eu não tinha consciência das contrações indo e vindo, dos meus movimentos para recebê-las. De algum modo, tudo estava certo enquanto eu fosse capaz de evocar trechos e imagens. Então a Ivanilde "anunciou que eu estava oficialmente em trabalho de parto", enquanto a Helena dizia que eu estava mais ou menos daquele jeito na noite anterior. Então trabalho de parto era aquilo? Era bom, na verdade. Eu poderia ficar daquele jeito por um bom tempo, acho. Recomeçamos a homeopatia (tínhamos iniciado na sexta pela manhã, se não me engano) e a Ivanilde me pedia para caminhar para acelerar o trabalho de parto. Eu não conseguia. Não que eu não conseguisse executar os movimentos - aquilo não era tão difícil naquela altura -, mas eu estava começando a ficar em um estado que não era tão agradável quanto as outras partes do trabalho de parto: eu queria, mas não queria as pessoas perto; eu queria, mas não queria ajuda; eu queria, mas não queria sentir que estava com alguém. Essas sensações paradoxais eram ruins. Na sexta eu comecei a me sentir extremamente incomodada se qualquer pessoa falasse durante as contrações. Refiro-me a praticamente qualquer coisa, inclusive a coisas perfeitamente comuns de serem ditas durante uma contração, como, por exemplo, "essa está mais longa". Não era só um incômodo emocional, mas, sobretudo, um incômodo frio. Eu tinha um tipo de choque, parecia que ia me dar muita, muita dor de cabeça, não era bom, de jeito nenhum. Agora some isso a minha vergonha e vai ter a confusão. A outra parte não tão boa do trabalho de parto chegou quando começamos a caminhar, acho que foi com a Léo, em primeiro lugar, mas pode ter sido a Helena... Eu ficava incomodada com o toque físico, talvez mais que com a fala. Sim, eu queria toque, segurar na mão e abraço. Todo o resto me dava um desespero, uma agonia, como se estivesse quebrando alguma coisa, sei lá. Eu nunca tinha lido sobre isso, e agora não dava mais tempo de perguntar o que estava acontecendo. Mas tanta reatividade a toque físico não podia ser ok. E a vergonha de não conseguir filtrar esse mal-estar e acabar repelindo o toque das pessoas também era ruim.
Achei muito interessante a comunicação silenciosa que foi sendo estabelecida entre mim e as meninas da equipe. Com cada uma delas essa sintonia se mostrava de uma forma diferente, mas todas elas pareciam captar no ar o que eu estava sentindo e fazer de tudo para reagir positivamente a isso, por mais estranho que talvez pudesse parecer. A Helena simplesmente me segurava do jeito perfeito, a Léo parecia ler meus pensamentos e até mesmo ser minha voz quando eu estava imersa demais para explicar o que quer que fosse e a Ivanilde conseguia cantar de algum lugar da casa. A distância, o timbre, as notas, a voz dela eram perfeitos para mim, nem longe demais, nem perto demais, e era gostoso usar os hinos religiosos que ela entoava como pano de fundo para as imagens e as frases mentais. O fato é que, quanto mais o trabalho de parto engrenava, menos eu queria falar e menos eu queria ouvir. Muito maluco isso. Com o tempo eu percebi que as palavras das pessoas tinham que atravessar uma cortina até chegar ao meu cérebro, e que isso, de alguma maneira, me tirava energias. Eu não entendia bem porquê tudo isso, porque, a sério, eu estava bem. As contrações iam e vinham, eu reagia a elas, cantava, gritava, fazia sons guturais, mas era mais no automático que qualquer outra coisa. Lembro que com a Helena isso foi muito legal: ela me abraçava e me "ajudava com os sons", e eu não precisava pensar no que ela estava falando, apenas acompanhar, e isso era bom. Ela não falava, apenas fazia os sons, e eu não precisava pensar. Eu sentia que devia estabelecer uma espécie de separação entre meu corpo e minha mente, porque só assim eu conseguiria ter o controle do processo. Era meio irônico precisar tanto do meu cérebro, quando eu tinha entendido que a melhor forma de parir minha filha seria desligá-lo. Se eu soubesse que seria tão fácil, não teria gasto tanta energia preciosa me xingando por não conseguir desligar a mente.
Bem, eu tentava caminhar, mas não conseguia, não por questão física, mas porque no trabalho de parto a minha tendência à imobilidade era quase irritante. Eu só queria me mexer para as contrações, só queria abrir a boca para as contrações. Depois de algum tempo, não sei quanto, ouvi a Léo dizer para alguém que eu tinha "feito o meu ninho" ali no quarto, e então não saí mais de lá. Lembro de ter solicitado água de coco e água comum durante todo o trabalho de parto, mas não guardei consciência precisa desses momentos: era meu corpo que fazia isso, não a minha mente. A minha mente estava longe, cada vez mais alheia, voltando à tona só quando alguém se "aproximava demais" ou quando percebia algum ruído que lhe parecia estranho. Enquanto isso, trechos e trechos de músicas e livros desfilavam na minha cabeça, e eu os repetia mentalmente com todas as forças durante as contrações, enquanto verbalmente alternava entre chamar pela minha filha e pedir forças a Deus. Em algum momento a Ivanilde veio e me sugeriu, com muita gentileza, que eu vocalizasse menos, para poupar energias. Tentei fazer e deu certo. Não vocalizar naquele momento também me ajudava a me internar mais na mente, naquele repositório de frases e trechos que eu tinha arquivado inconscientemente para usar durante as contrações. Acho que tínhamos acabado de voltar de uma caminhada meio frustrada pelo corredor da casa quando eu sugeri a banheira e a Ivanilde disse que era melhor só entrar depois de uns seis centímetros, eu acho. Aquilo estava ok para mim, ela estava certa e, de alguma forma, eu sentia que podia continuar naquilo infinitamente. Após o toque, estávamos com os centímetros certos e fomos para a banheira. As contrações acalmaram de alguma forma, mas eu fiquei assustada com minha mente. O querer e não querer companhia se tornou ainda mais difícil de administrar. É o tipo de coisa que não tem meio termo: ou você quer, ou você não quer, e lidar com duas impressões fortes e concomitantes em torno do mesmo tema era muito desgastante e frustrante, para falar a verdade. Mas o pior não foi isso. Eu senti, de alguma forma, que o meu corpo estava menos resistente, que não estava obedecendo mais aos comandos das imagens e dos trechos. Lembro de ter tido um calafrio considerável na banheira e de ter pensado: ou é fase de transição para o expulsivo, ou é endorfina... Agora vai! Mas o meu corpo demorava para reagir. Eu me levantava, mas ele parecia pesado. Eu queria as pessoas e me atirava na direção delas, mas depois me "assustava" com sua presença e tentava repelir. Era como se no esforço de contrair o útero e dilatar, ele estivesse perdendo o elo com a mente que, aparentemente, era também o que o provinha de mais energias para continuar. Foi a primeira vez que tive medo, durante todo o trabalho de parto efetivo. O meu ponto não era anestesia – eu mal tinha consciência da dor e, para ser bem franca, nem me lembro mais dela - mas sentia que o meu corpo não poderia ir muito mais longe, que eu estava perdendo o elo com ele e que isso poderia por tudo abaixo. O pior é que eu experimentava imagens, ideias, frases e todas elas eram incapazes de alimentar meu organismo. Foi o momento em que conversar se tornava absurdamente penoso, embora fosse necessário, claro. Lembro que estava lutando para encaixar uma imagem que funcionara muito bem no passado – Mariles engatinhando no chão - e ela falhava redondamente, quando uma pergunta da Ivanilde atravessava aquela cortina maluca que parecia se estabelecer entre mim e o resto do mundo. Era algo como "filha, você quer que ela nasça aí?" E eu pensava: "ahn? Querer que ela nasça? o que? Quem?" e demorava um tempo precioso para conseguir articular uma resposta coerente. Então ela me explicava que daquele jeito a passagem diminuía, que eu acharia mais fácil se ficasse de lado. Eu entendia as palavras, absorvia o tom empático e afetuoso, mas era incapaz de processá-las, enquanto as imagens se sucediam na minha cabeça, com cada vez menos eficácia e mais desespero. Eu levava em média duas ou três contrações para entender e conseguir responder direito ao que ela dizia, era essa a impressão... E ficava muito brava com meu corpo, nesse ínterim, porque até ali ele fora capaz de fazer tudo que era dito sem que eu precisasse pensar, e agora, quando a Hora se aproximava, ele estava fraquejando. A dor não importava mais. A minha consciência dela era cada vez mais vaga e insignificante, de qualquer modo. Importava conseguir fazê-lo voltar a responder, voltar a codificar os estímulos, voltar a atender às informações. EU estava separada, em algum ponto presa entre o corpo e a mente. Em algum lugar eu estava lúcida, cônscia de tudo, mas incapaz de reagir.
Enquanto isso, lembro das pessoas se alternando na minha frente, para segurar o chuveirinho encima da minha barriga. Aquilo era bom: aliviava e me ajudava a conectar corpo e mente... No mais, eu ficava dentro da banheira agora, de vez em quando me levantando e gritando durante as contrações, ou tentando não gritar durante as contrações, ou tentando absorver uma informação extremamente simples como se tratasse de um cálculo realmente complexo e inédito.
"Você quer sair da banheira?" - a Ivanilde sugeria, sempre muito suave, falando alguma coisa sobre minha temperatura ou minha pressão, nem lembro mais. Ahn? Sair? Para onde?". Parecia muito simplesmente continuar aonde estava, puxando aquela carroça pouco cooperativa que era meu corpo, naquele momento. Lembro de ter dito qualquer coisa sobre medo da dor e estar pensando na dor de sentir que estava perdendo o controle do corpo, não estava mais conseguindo colaborar ativamente... Mas acho que todo mundo interpretou, compreensivelmente, que eu estava falando da dor do parto. Lembro de dizer o clássico "eu não aguento mais", pouco depois que meu corpo tinha enviado a informação para o meu cérebro meio desconectado. Foi aí que eu encontrei a imagem perfeita. Já tinha passado sem sucesso pelas evocações de frases poderosas, de imagens de efeito, de trechos redentores. Os vultos da resignação e da doçura eram suaves demais para aquele momento; os revolucionários e ativos eram distantes demais. Foi naquela admissão do "não consigo" que eu encontrei a coisa que me deu forças. No final de tudo, foi o orgulho humano, puro e simples que me fez reagir, me fez realmente conseguir sair da letargia mental e assumir outra vez o controle, tanto quanto se podia ter qualquer controle naquele momento. Eu me imaginei ali, parada, com minha filha entalada em algum ponto entre a bacia e o canal de parto. Quanto tempo elas levariam para perceber que eu não estava conseguindo mais me obrigar a continuar de forma ativa e produtiva? Eram todas experientes demais para não perceber isso. E então, o que viria? Fórceps? Nunca me ocorreu perguntar se a Ivanilde usava fórceps - provavelmente sim, - porque na minha cabeça jamais imaginei que pudesse precisar disso. Certo. E se estivesse alto demais para o fórceps, eu pensava, o que ela faria? Uma transferência? Francamente, eu não podia fazer isso com nenhum de nós. Não podia fazer isso com minha filha - levá-la até ali para terminar num hospital -, não podia fazer isso com os cinco ali presentes - imaginá-los se esforçando tremendamente para me vestir ou me enrolar de uma forma minimamente apresentável para irem comigo até um hospital era terrível... E, sobretudo, não podia fazer isso com o meu orgulho pessoal.
Ninguém tinha mencionado qualquer intercorrência - aparentemente, o problema todo era um princípio de exaustão física, porque nem prolongado o trabalho de parto ativo estava - então, eu ainda tinha chance de assumir algum controle e parir minha filha ali. Eu tinha feito todo o percurso, contactado as pessoas certas, lido um monte, aprendido, enfrentado meus limites emocionais um a um... Para acabar em mais uma cesárea com não sei quanto de dilatação? Absolutamente. Eu não podia ser um "quase parto domiciliar" diante de mim mesma. Porque era óbvio o que aconteceria se eu fosse ao hospital com aquelas contrações e sem forças para me obrigar a continuar: eu iria para a cesárea. Depois de uns vinte dias de contrações dolorosas, de lutar para não ir ao hospital, para não ceder, para preservar o nascimento da minha filha, eu iria terminar em uma cesárea por falta de energias? De jeito nenhum, droga! Acho que foi nesse ponto que eu comecei a estapear a parte lateral da banheira. Na minha mente, eu me estapeava. Eu queria fazer qualquer coisa que obrigasse meu corpo a reagir de forma mais contundente, e lembro de sem querer ter beliscado a Ivanilde e puxado o cabelo da minha mãe, e apertado a mão da Léo ou da Helena com força demais. O ponto não era aquele. Eu queria sair. Eu queria tirar minha mente daquele lugar em que ela pensava, mas não entendia nada nem mandava nada. Eu queria tirar minha mente daquele lugar em que era difícil demais virar meu corpo de lado e decidir para onde ir, já que era interessante que eu saísse da banheira. Eu queria tirar a minha mente daquele lugar em que uma cesárea era uma hipótese e em que eu poderia ir, totalmente indefesa e carregando minha filha "meio lá, meio cá" para o lugar aonde eu não achava que estaríamos em segurança.
Acho que foi nesse ponto que eu sugeri ir para o chuveiro com a banqueta de parto, mas não deu certo, a banqueta escorregou lá embaixo. Então eu estava na cama e estava no expulsivo. Alguém dizia que a cabeça estava apontando, e eu estava lá, presa naquele limbo entre o corpo e a mente, incapaz de sentir, apenas irritada com meu corpo e tentando obrigá-lo a reagir.
"Assim você reduz o espaço da pelve" - dizia a Ivanilde, quando eu estava sei lá de que jeito encima da cama. Eu entendia, mas não conseguia me obrigar a interpretar, e isso só me deixava mais irritada. Eu não estava mais "suplicante". Não estava mais na fase do "não aguento mais"; agora o momento era o de aguentar sim, e colaborar a todo o custo. Lembro de usar absolutamente de toda concentração para decodificar e entender cada pedido simples que Ivanilde me fazia. Lembro de ficar praticamente imóvel durante os intervalos, não relaxando, como era de se supor, mas plasmando uma espécie de túnel mental aonde só entrasse as vozes delas e as orientações. Eu precisava me alhear de todo o resto - da irritação por estar perdendo as forças, do meu orgulho ferido caso tudo desse errado, do desejo de proteger a mim e minha filha de um monte de intervenções - e ficar só com a voz dos cinco: da Ivanilde, da Helena, da Léo, do Vi e da minha mãe. Ouvia cada palavra e juntava-as devagarzinho, como num quebra-cabeças, e me obrigava a reagir adequadamente. Foi nesse ponto que eu consegui algum domínio, ainda que de forma lenta. Virar de lado, usar a contração para fazer força, não para vocalizar, impulsionar o joelho em direção ao seio e fazer força, força, força, até que sentisse que não precisava mais fazer força. Acabasse a contração, eu devia descansar, podia abaixar os joelhos, que isso não faria o bebê retroceder. Lentamente eu conseguia obedecer. Lentamente eu conseguia sentir que minha filha sairia de lá com segurança, para ser amparada pelas pessoas em quem eu confiava irrestritamente. Lentamente eu conseguia garantir que o seu pai teria um novo registro de parto, que eu não seria uma estatística de cesárea. Mas eu percebi um outro "problema": o esforço para chegar àli era grande demais para me permitir fazer qualquer outra coisa. O túnel funcionava, meu corpo reagia, mas eu não conseguia me importar com o que acontecia externamente... E o que acontecia externamente era o nascimento da minha filha. Eu podia desfazer o meu túnel para "sair" e sentir o nascimento dela... Mas tive medo de dar errado. Tive medo de perder o controle e nos deixar engasgadas no expulsivo. Então ela nasceu e eu não senti nada. Quer tocar? Não. "Aquilo" entre as minhas pernas não me causou qualquer emoção. Aquilo sobre mim não me provocou nada. Eu estava exausta e concentrada demais para fazer alguma coisa além de me concentrar e concluir tudo. Consegui lhe pedir desculpas pelo meu estado. Consegui lhe dizer alguma coisa coerente, mas no mais, não havia nada, como se pensar tivesse retirado todo o espaço de sentir. Mas tudo bem, eu não me importava com isso naquele momento. Havia muito tempo para sentir. Muito tempo para prová-la, para aninhá-la e acolhê-la, para termos todo o tempo do mundo. Nem havia espaço para me sentir vitoriosa ou qualquer emoção positiva sobre mim. Eu estava exausta e minha filha estava segura. Eu tivera o parto humanizado que nos prometera, cercada das pessoas que mais importavam e que, cada qual a seu modo, seguiram comigo desde meses atrás. O processo estava encerrado e eu não tinha espaço para sentir nem para lamentar o que quer que fosse, mas estávamos todos em paz, estávamos todos bem e eu estava bem. Não me sentira assustada nem agredida por nada que qualquer pessoa a meu redor tivesse dito ou feito. Os demônios eram todos meus, os medos eram todos meus, e estava bem que fosse assim. Cada qual leva o que é para o trabalho de parto, e isso era justo, natural e... Humanizado.
Na hora de costurar a laceração (extensa, mas de primeiro grau, segundo a Ivanilde), eu comecei a fazer força para sair do túnel. Não precisava mais dele, podia ficar exausta à vontade. Sabia que, se eu dormisse por doze horas, minha filha estaria bem, por causa da reserva energética que ela tinha. Então eu comecei a sair, e o efeito prático foi uma breve, cômica e inesperada "crise de loucura". Lembro de fazer um tipo de musiquinha com as letras do alfabeto, de ficar falando coisas absurdas, de não ter o menor controle da minha mente; de cantar "comprei um quilo de farinha pra fazer farofa" enquanto a Ivanilde me costurava. Teve até direito a laloglocia, se me lembro bem. Mas não importava. Eu estava saindo do túnel, saindo, saindo... O resto passou num borrão. Helena e Léo se despedindo, Ivanilde pro aqui nos dois dias seguintes. As primeiras mamadas passando em um átimo, e eu ali, de algum modo, sem sentir nada. Aquilo começou a me perturbar, com o passar dos dias. Não estava certo eu não sentir nada sobre o parto e, sobretudo, sobre a chegada da minha filha. Nada estava certo no mundo quando eu não conseguia me enternecer ao amamentá-la. Eu não estava nas probabilidades de depressão pós-parto e afins, então eu tinha que dar um jeito nisso. Foi logo posterior à saída da Ivanilde. Não foi difícil fazer o que eu queria. A porta fechada, nós duas no quarto, os apetrechos para o banho posicionados com uma meticulosidade quase que militar. Estávamos nós duas no quarto, o aquecedor ligado. Começamos a conversar, como era na barriga. Eu ia lhe falando e cantarolando coisas leves mas suaves, bem suaves, e, de repente, me via repetindo para ela as improváveis canções de ninar que dividia com Estêvão. As peças eram retiradas uma a uma e eu a tocava, sentia e cheirava. Deixava que sua delicadeza me impregnasse, que nos conectássemos outra vez. Ela não chorou, apenas apertou meu dedo como resposta. Não retirei o dedo e fiquei fazendo tudo com uma mão apenas, para não desfazer o seu toque. Não tinha pressa nenhuma e, lentamente, eu ia saindo, saindo do túnel. A onda de amor que deveria ter vindo durante o nascimento me submergiu quando ela estava imersa na água, quietinha, apenas mexendo-se levemente enquanto eu a tocava. Era mais uma carícia que um banho; era mais um encontro que um procedimento de cuidado e rotina. Tudo estava certo agora. Os próximos dias prometem ser difíceis. Eu tenho muito para aprender. Acho que não sei ser mãe de duas crianças de uma só vez. Eles têm necessidades tão diferentes! Também não sei se estou totalmente pronta para virar noites cuidando de um bebê, se ela precisar. Mas não importa. A sério, não importa. Por pior que seja, vai passar, e vai passar com glória, se eu conseguir ser coerente com os compromissos que assumi. Faz muitos anos que desisti da ideia pueril de ter uma "vida fácil".Acho que eu vou, até ao fim, de dificuldade em dificuldade, de desafio em desafio, de vitória em vitória, de derrota em refazimento... E não me importo que seja assim.
Há bastantes anos, no tempo em que eu era muito mais impulsiva e imatura, ouvi uma frase que me marcou muito: "no planeta em que vivemos, o sofrimento é condição. É impossível passar pela vida física sem conhecer o sofrimento, da mesma forma que é muito difícil passar pela vida física sem conhecer o amor, e conhecendo o amor, pode-se suportar qualquer espécie de sofrimento".
Os agradecimentos são tantos, que nem sei se é gentil escrever a respeito. A todas que ofereceram suas casas para eu parir - nunca, nunca vou esquecer disso; a Helena, Ivanilde e Léo, que por meses me dedicaram seu profissionalismo, sua empatia e seu amor; ao Vi, por ter sido sempre o melhor marido que podia ser, e pro ter sido tudo que eu poderia pedir; a minha mãe, por ter vindo e se superado; às listas bestbaby e Parto nosso - como um todo e em particular a muitos dos seus membros -, por seu apoio, carinho, compreensão e empatia; a Ana Cris, por ter me xingado de idiota quando eu pedi. :-)))) A Beca, por ter dito sempre as coisas certas; ao Estêvão e a Mariles, por, sobretudo, terem confiado em mim.
Se eu acho que valeu a pena? Isso nem se discute. Se eu queria mudar alguma coisa? Confesso que lamentei não ter sido mais ativa durante o nascimento da minha filha. Eu queria ter tocado nela ainda dentro de mim, eu queria ter sentido mais ativamente o cordão umbilical e mesmo a placenta... Mas eu sei que fiz tudo o possível para fazer a minha parte, então estou em paz comigo e totalmente capaz de manter essas pequenas frustrações em um nível inofensivo.
Acho que é isso...
Paz, luz, discernimento e força, sempre,
Jo"

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