Em casa ou no hospital?
A realização de partos domiciliares, em que as intervenções médicas só ocorrem quando necessário, vem crescendo no mundo. Mas ainda não há um consenso entre os profissionais da área sobre a segurança de dar à luz fora do ambiente hospitalar.
Por: Thaís Fernandes
Publicado em 17/07/2013 | Atualizado em 17/07/2013
Muitos países têm taxas significativas de partos domiciliares. Nos Países Baixos, por exemplo, mais de 30% das gestantes dão à luz em casa. (foto: Jason Lander/ Flickr – CC BY 2.0)
Na época de nossas avós, dar à luz em casa era algo comum. Apenas a partir da metade do século 20, na tentativa de reduzir a mortalidade materna e neonatal, é que começou a se estabelecer no Brasil a visão do parto como um evento médico, que precisava ocorrer em um hospital, cercado de procedimentos e tecnologias. Hoje a necessidade das várias intervenções médicas praticadas no processo de nascimento é amplamente questionada no país. Mas, em relação à obrigatoriedade do parto hospitalar, as opiniões ainda se dividem.
Durante o processo de medicalização do parto, a figura das parteiras começou a ser excluída da assistência ao nascimento. Em nível mundial, construiu-se um cenário bastante diversificado. Alguns países, como Estados Unidos, Irlanda, Rússia, República Tcheca, França, Bélgica e Brasil – pelo menos nas áreas urbanas –, passaram a adotar um modelo centrado no médico e no uso de procedimentos obstétricos e tecnologias. Por outro lado, nações como Holanda, Nova Zelândia e os países escandinavos mantiveram uma abordagem mais natural, com a presença de parteiras e menores índices de intervenções. Já países como Inglaterra, Canadá, Alemanha, Japão e Austrália vivem uma mistura dos dois modelos.
Nesse processo, foram criadas inicialmente em alguns países desenvolvidos casas de parto, dentro ou fora de hospitais, onde gestantes de baixo risco podem dar à luz em um ambiente semelhante ao domiciliar, com assistência obstétrica primária, em geral sob o cuidado de enfermeiras.
Nos últimos anos, as casas de parto e os partos domiciliares vêm crescendo no mundo inteiro, como forma de fugir do atendimento hospitalar frio e medicalizado
Nos últimos anos, as casas de parto e os partos domiciliares vêm crescendo no mundo inteiro, como forma de fugir do atendimento hospitalar frio e medicalizado. Enquanto nos hospitais seguem-se protocolos de rotina que levam em conta todas as possíveis complicações do parto, nas casas de parto o protocolo se baseia na normalidade do processo, na observação individual e na escolha prévia da gestante.
Em geral, a mulher que decide ter seu filho em uma casa de parto ou em sua própria casa busca ter um parto natural – ou humanizado –, onde suas escolhas são respeitadas e as intervenções médicas só ocorrem quando é realmente necessário, de acordo com as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Nesse tipo de parto, a dor é aliviada por métodos não farmacológicos comprovados cientificamente, como imersão em água, massagem, mudança de posição e movimento. Além disso, a presença de um acompanhante durante todo o processo é incentivada.
Atualmente, há 25 centros de parto normal no Brasil, localizados dentro de hospitais ou em unidades anexas, e recentemente o Ministério da Saúde anunciou a expansão desse tipo de estabelecimento, com a previsão de implantar, até 2014, outros 280 centros em todo o país. Há ainda casas de parto autônomas, que não estão diretamente vinculadas a uma unidade hospitalar.
Segundo a enfermeira-obstétrica Leila Azevedo, diretora da Casa de Parto David Capistrano Filho, em Realengo (Rio de Janeiro), esse tipo de estabelecimento só atende gestantes de baixo risco. Caso seja detectado algum problema durante a gestação ou o trabalho de parto, a mulher é encaminhada – ou transferida de ambulância, se for o caso – para uma unidade convencional da rede pública.
Confira no vídeo abaixo o trabalho realizado na Casa de Parto de Realengo
Desde que a Casa de Parto de Realengo foi inaugurada, em março de 2004, mais de 2.100 partos já foram realizados na unidade e apenas de 3 a 4% das gestantes precisaram ser transferidas para o hospital após entrarem em trabalho de parto. A casa recebe cerca de 60 novas gestantes por mês e oferece em torno de 800 consultas mensais de pré-natal. “Cerca de 30% das nossas clientes são adolescentes, mas a maioria tem entre 20 e 30 anos e possui 2º grau completo”, diz Azevedo.
A equipe da Casa de Parto de Realengo é composta por enfermeiras-obstétricas, técnicas de enfermagem, uma assistente social e duas nutricionistas. Todo o pré-natal é feito na unidade e inclui, além das consultas individualizadas de rotina, práticas educativas em grupo sobre questões associadas à gestação e ao parto e cuidados com o bebê. “Esse é um serviço público modelo, que inclui a preparação para o parto e o estímulo à participação da família”, destaca a médica epidemiologista Daphne Rattner, professora da Universidade de Brasília e presidente da Rede pela Humanização do Parto e Nascimento (Rehuna).
Baixo risco
Mas muitos ainda questionam: é seguro ter filhos fora do hospital? Vários estudos têm sido feitos nas últimas décadas para tentar responder essa pergunta.
Segundo pesquisa publicada em 2011 que analisou os resultados de quase 65 mil partos de gestantes de baixo risco em diferentes locais na Inglaterra, não há diferenças significativas nas chances de mortalidade do feto ou recém-nascido e de complicações neonatais quando se comparam partos planejados domiciliares, em casas de parto autônomas, em centros de parto normal ao lado de unidades obstétricas e em hospitais.
Durante o estudo, o número de eventos adversos em geral foi baixo, em torno de cinco para cada mil nascidos vivos. Uma ressalva é feita apenas para mulheres em primeira gestação, que tiveram mais chances de desfechos negativos em partos domiciliares e sofreram número maior de transferências para hospitais.
Uma revisão de 22 estudos internacionais publicada em 2012 também concluiu que não há diferença, em casos de gestantes de baixo risco, nas taxas de mortalidade do bebê imediatamente antes ou após o nascimento, se comparados partos domiciliares, em casas de parto assistidos por parteiras certificadas e em hospitais assistidos por médicos.
Uma pesquisa realizada na maior província dos Países Baixos, onde há um sistema oficial de parto domiciliar e mais de 30% das gestantes dão à luz em casa, mostrou que, em mulheres em primeira gestação e com baixo risco, o parto domiciliar é tão seguro quanto o hospitalar. Já para mulheres de baixo risco e com gestações anteriores, o resultado do parto domiciliar foi significativamente melhor do que o do parto hospitalar.
No Brasil, um capítulo recente da polêmica sobre a segurança do parto domiciliar veio à tona em agosto de 2012, quando o Conselho Federal de Medicina (CFM) divulgou recomendação para que os partos sejam realizados em ambiente hospitalar, por ser mais seguro. A posição se baseia em conclusões do já citado estudo sobre nascimentos na Inglaterra e em dois artigos publicados pela mesma equipe de pesquisadores em 2010, um no Obstetrical & Gynecological Survey e outro noAmerican Journal of Obstetrics and Gynecology.
Este último artigo traz uma revisão de 12 estudos – e não 237, como menciona o CFM – sobre a segurança de partos hospitalares e domiciliares planejados tanto para mães quanto para bebês. O CFM destaca que esse trabalho apontou uma taxa de morte de recém-nascidos em partos domiciliares planejados de 0,2%, número duas vezes maior que o de partos em hospitais (0,09%).
Mas muitos pesquisadores e profissionais da área da saúde questionam o posicionamento do CFM. Melania Amorim, professora da Universidade Federal de Campina Grande e médica do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira, em Pernambuco, ressalta que o referido artigo recebeu várias críticas da comunidade científica e aponta falhas metodológicas e estatísticas no trabalho e problemas na interpretação do Conselho. “Os dados utilizados para o cálculo de morte neonatal incluíram partos que não tinham sido assistidos por parteiras ou enfermeiras-obstetras certificadas, o que já se demonstrou ser fator importante para redução dos riscos”.
Amorim: “Efeitos perinatais adversos são incomuns em todos os locais, enquanto as intervenções durante trabalho de parto e nascimento são muito menos comuns em unidades não obstétricas”
O obstetra Paulo Nowak, da Universidade Federal de São Paulo e membro da diretoria da Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Estado de São Paulo (Sogesp), diz que, por causa das críticas, foi feita uma revisão do estudo por um comitê da própria revista onde ele foi publicado e foram encontrados resultados estatísticos discrepantes dos originais. “Porém, a revista faz questão de apontar que os resultados encontrados pelo comitê continuam suportando as conclusões dos autores e, por isso, o artigo foi mantido.”
Amorim destaca que o estudo, por outro lado, associa o parto domiciliar à redução de complicações como infecção, hemorragia pós-parto, laceração no períneo e retenção placentária. E acrescenta: “Efeitos perinatais adversos são incomuns em todos os locais, enquanto as intervenções durante trabalho de parto e nascimento são muito menos comuns para os nascimentos planejados em unidades não obstétricas.”
Vozes dissonantes
A médica também questiona a exclusão de pesquisas importantes sobre mortalidade do feto e recém-nascido dessa revisão, principalmente dois estudos holandeses. Um deles, publicado em 2009, analisou 529.688 partos de gestantes de baixo risco e concluiu que, nesses casos, o parto domiciliar planejado não aumenta os riscos de morbidade e mortalidade perinatal. O outro, de 2011, incluiu 680 mil partos e chegou a uma taxa de mortalidade perinatal em partos domiciliares planejados de 0,15%, contra 0,18% em partos hospitalares.
Nowak argumenta que, na literatura médica, é possível encontrar tanto artigos que colocam o parto domiciliar como alternativa segura quanto outros que apresentam resultados totalmente opostos e apontam um aumento da mortalidade neonatal nesses partos quando comparados aos hospitalares. “Como não existe consenso na literatura, é razoável esperar que o CFM opte por uma conduta que acredita ser mais segura”, defende.
Amorim ressalta, no entanto, o posicionamento de organismos internacionais: “Apesar da posição contrária de alguns conselhos regionais de Medicina e da Federação Brasileira de Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), que vêm sistematicamente desaconselhando o parto domiciliar, devemos destacar que tanto a OMS como a Federação Internacional de Ginecologistas e Obstetras (FIGO) respeitam o direito de escolha do local de parto pelas mulheres e reconhecem que, quando assistido por profissionais habilitados, há benefícios consideráveis para as mulheres que querem e podem ter partos domiciliares.”
A OMS reconhece como profissionais habilitados para prestar assistência ao parto tanto médicos como enfermeiras-obstetras e parteiras e recomenda que as gestantes de baixo risco possam escolher ter seus partos em casa se receberem o nível apropriado de cuidado e tiverem planos emergenciais para transferência para um hospital devidamente equipado caso surjam problemas. “Mas é importante que a equipe que atende à gestante esteja em contato com o hospital e que haja disponibilidade de atendimento para esse possível fluxo inesperado de pacientes”, alerta Nowak.
A médica Lucila Nagata, membro do comitê de mortalidade materna da Febrasgo e do setor de gestação de alto risco do Hospital Materno Infantil de Brasília, lembra ainda que, no Brasil, não existe um serviço de suporte com ambulância que fique disponível para a paciente. “Além disso, nas grandes cidades, há o problema do trânsito, que dificulta esse transporte”, ressalta, acrescentando que as casas de parto têm uma proximidade de segurança de um hospital de referência.
Já em regiões distantes das grandes cidades e onde não há assistência médica estruturada, Nagata afirma que o parto domiciliar é válido.
Daphne Rattner reforça que é possível ter um parto humanizado, com um mínimo de intervenções médicas, mesmo em hospitais. E conclui: “A OMS recomenda que a mulher dê à luz em um local onde ela se sinta segura. Esse local pode ser a sua casa, uma casa de parto ou o hospital.”
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