Rotina desnecessária e perigosa
Várias práticas adotadas com frequência por médicos durante os partos normais no Brasil são condenadas por órgãos internacionais de saúde. Seu uso sem critério pode expor gestantes e bebês a maiores riscos.
Por: Thaís Fernandes
Publicado em 16/07/2013 | Atualizado em 17/07/2013
A obrigatoriedade de a gestante permanecer deitada durante o trabalho de parto é uma prática frequentemente adotada pelos médicos e que não encontra respaldo em evidências científicas. (foto: Aeroporto de Cegonhas)
Nas últimas décadas, começou a ser construída no Brasil uma cultura em que o parto, antes visto como um acontecimento natural, passou a ser tratado como evento médico. Essa mudança levou não apenas ao aumento expressivo das taxas de cesarianas, mas também à adoção de diversos procedimentos médicos e tecnologias durante os partos normais. Atualmente, várias pesquisas têm mostrado que essas intervenções são muitas vezes desnecessárias – e podem inclusive ser prejudiciais –, mas várias delas continuam sendo usadas de forma rotineira nos hospitais.
Na tentativa de orientar o modelo de assistência ao parto com base em evidências científicas reunidas por diversos especialistas de todo o mundo, a Organização Mundial da Saúde (OMS) mantém um guia com recomendações para os profissionais da área. Nesse documento, são identificadas quatro categorias de práticas: aquelas úteis e que devem ser estimuladas; as claramente prejudiciais ou ineficazes e que devem ser eliminadas; aquelas que devem ser utilizadas com cautela até que haja mais evidências para sustentar uma recomendação clara; e as frequentemente usadas de modo inadequado.
A médica epidemiologista Daphne Rattner, professora da Universidade de Brasília e presidente da Rede pela Humanização do Parto e Nascimento (Rehuna), afirma que a atual cultura de ensino da obstetrícia se baseia em grande medida nas práticas prejudiciais ou ineficazes. Entre elas estão: a obrigatoriedade de a gestante permanecer deitada durante o trabalho de parto, a colocação preventiva de soro na veia da paciente, a raspagem dos pelos pubianos, a realização de pressão sobre a barriga da mulher para ‘auxiliar’ a expulsão do bebê (manobra de Kristeler), a lavagem intestinal antes do parto e o exame retal após.
Rattner: A atual cultura de ensino da obstetrícia se baseia em grande medida em práticas prejudiciais ou ineficazes
Há, no entanto, uma série de evidências científicas que mostram a impertinência dessas ações. Segundo trabalho publicado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar(ANS), por exemplo, as posições verticalizadas trazem várias vantagens para a evolução do trabalho de parto, como menor compressão dos vasos sanguíneos – o que melhora a vascularização da placenta e a oxigenação do feto –, ampliação do diâmetro do canal de parto, maior eficácia das contrações uterinas e participação mais ativa da gestante. “Além disso, há evidências científicas de que se movimentar é melhor para encaixar o bebê”, acrescenta Rattner.
Em relação a outras práticas condenadas pela OMS, a epidemiologista explica, por exemplo, que a raspagem dos pelos faz aumentar o risco de infecção materna, pois o procedimento também retira a camada que protege a pele de bactérias. Já a lavagem intestinal gera risco de contaminação do bebê, devido aos resquícios de água e fezes que podem permanecer no intestino e ser mais facilmente liberados durante o parto por estarem no estado líquido. “Felizmente essas duas práticas já estão saindo da rotina”, comemora.
Sem pressa
Esse não é o caso, no entanto, do uso do hormônio sintético ocitocina para acelerar as contrações uterinas. O emprego da ocitocina para corrigir a evolução do trabalho de parto – o que pode ser necessário em algumas situações – está sendo frequentemente adotado de forma inadequada.
A epidemiologista Maria do Carmo Leal, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz e coordenadora do projeto Nascer no Brasil, explica que a ocitocina pode ser indicada em condições específicas, por exemplo, quando o trabalho de parto está muito prolongado. Essa avaliação, no entanto, pode variar: nos últimos anos, o tempo de trabalho de parto considerado normal caiu de 18 para 12 horas. “Além disso, a ocitocina é recomendada no pós-parto para ajudar na expulsão da placenta”, acrescenta.
O problema quanto à ocitocina sintética é que não há meios precisos para medir seus efeitos no útero e a ação de uma mesma dose da droga varia de uma mulher para outra, o que pode levar a aumento excessivo da frequência das contrações e prejuízos para o bebê. “A indução e o aceleramento artificial das contrações sem uma indicação precisa podem resultar em dificuldades na oxigenação do bebê e dano cerebral no recém-nascido”, diz a ginecologista e obstetra Maria Helena Bastos, consultora nacional em saúde da mulher da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas). “Além disso, o uso de ocitocina causa dor e sofrimento desnecessários à mulher”, completa.
Daphne Rattner explica que a mulher tem a sua ocitocina natural, que é secretada na medida exata e no momento em que ela precisa, junto com hormônios analgésicos e euforizantes (endorfina). “O organismo não está preparado para uma superdose de ocitocina e não dá conta de produzir endorfina suficiente para neutralizar as fortes dores das contrações.”
Segundo artigo publicado em 2009 no American Journal of Obstetrics & Gynecology, a ocitocina continua sendo a droga mais comumente associada a complicações perinatais preveníveis, embora o uso de dispositivos para controle das doses e de instrumentos de medição eletrônica dos batimentos cardíacos fetais e monitoramento das contrações uterinas tenha tornado a sua administração mais segura. A ocitocina – ao lado de apenas outras 11 drogas – integra uma lista de alerta máximo, elaborada pelo Instituto para Administração Medicamentosa Segura (ISMP, na sigla em inglês), que reúne medicamentos com alto risco de causar dano quando usados de forma inadequada.
Os autores do artigo dizem que o mau uso da ocitocina hoje está associado à aceleração do trabalho de parto por conveniência do médico ou da paciente, motivo que não leva em conta a segurança da gestante ou do bebê. Eles defendem que a droga deve ser administrada de acordo com orientações específicas baseadas em evidências e em doses iniciais baixas para reduzir a probabilidade de danos. Os pesquisadores ressaltam ainda a existência de meios alternativos para encurtar o trabalho de parto, como hidratação aumentada, administração de glicose e suporte emocional contínuo.
Uso criterioso
Outra prática que tem sido frequentemente usada de forma inadequada durante os partos normais é o corte cirúrgico da região do períneo (área muscular entre a vagina e o ânus) para ampliar o canal de parto. Esse procedimento – chamado episiotomia – é aconselhado em até 30% dos casos, sendo que a taxa cai para 10% em gestantes de baixo risco. Seu uso é indicado para facilitar a saída do bebê e reduzir o trabalho de parto em situações de sofrimento materno ou fetal ou progressão inadequada do parto. “Mas, segundo dados do inquérito Nascer no Brasil, 58% das brasileiras que tiveram parto normal fizeram episiotomia”, conta Daphne Rattner, que também é coordenadora desse projeto na região Centro-Oeste.
A médica Lucila Nagata, membro do comitê de mortalidade materna da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e do setor de gestação de alto risco do Hospital Materno Infantil de Brasília, explica que a episiotomia é feita para proteger a mulher de uma laceração natural, que pode ser prejudicial. “É preciso ter bom senso e avaliar caso a caso essa necessidade”, diz.
Rattner argumenta que, quando o processo natural do parto é respeitado, o índice de laceração é baixo e, quando esta ocorre, raramente é tão profunda. “Não podemos dizer que a episiotomia seja uma prática danosa ou ineficaz, mas torna o pós-parto pior, porque o corte de várias camadas de tecido, inclusive o músculo, faz a cicatrização ser mais difícil. As evidências científicas mostram que ela não deve ser adotada como rotina.”
A peridural, embora seja um método de analgesia eficaz, interfere na evolução normal do trabalho de parto
Muito se discute ainda sobre o uso de anestesia peridural (injetada no espaço entre o canal ósseo da coluna vertebral e a medula) no parto normal, procedimento adotado corriqueiramente nos hospitais privados. Para a OMS, essa também é uma prática que vem sendo usada de forma inadequada. A peridural, embora seja um método de analgesia eficaz, interfere na evolução normal do trabalho de parto e está associada a um aumento das chances de uso de instrumentos especiais (fórceps ou ventosa) para ‘puxar’ o bebê e de febre e retenção urinária maternas. No entanto, ainda há divergências em relação à sua influência sobre as taxas de cesarianas e os riscos para os recém-nascidos.
A OMS estimula o emprego de métodos não invasivos e não farmacológicos para alívio da dor, como massagem e técnicas de relaxamento, durante o trabalho de parto. Umaanálise de oito ensaios clínicos evidenciou que a imersão em água reduziu o uso de analgesia e a percepção de dor pela gestante, sem resultar em efeitos adversos na duração do trabalho de parto, em cesarianas ou em complicações neonatais.
A mulher no comando
Diante desse cenário em que práticas não recomendadas têm sido usadas como procedimento de rotina nos serviços de saúde, a defesa do chamado parto natural – ou humanizado – ganha cada vez mais espaço. Nesse tipo de parto, a mulher está no controle da situação, é ela quem faz as escolhas relativas ao nascimento do filho, sem abdicar do uso de tecnologias e medicamentos para garantir a segurança do parto e a sua saúde e a do bebê. O médico só intervém quando é realmente necessário.
“O parto humanizado é aquele em que a protagonista é a mulher, o médico está ali para ajudar”, define Daphne Rattner. “O objetivo é que toda a prática de atenção ao parto leve em consideração as mais atualizadas evidências científicas, que atualmente não têm sido incorporadas ao cuidado individual. Para isso, é preciso que a mudança comece pela formação em obstetrícia, que ainda hoje no Brasil se baseia principalmente em concepções e práticas medicalizadas de parto.”
O obstetra Paulo Nowak, da Universidade Federal de São Paulo e membro da diretoria da Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Estado de São Paulo (Sogesp), concorda que as intervenções médicas só devem ocorrer quando necessário. Mas alerta: “O problema é o radicalismo de não fazer nunca.”
Em um parto natural, outras práticas de assistência ao nascimento recomendadas pela OMS são estimuladas, como o oferecimento de líquidos à gestante por via oral durante o trabalho de parto, a liberdade de movimento e o incentivo à adoção de posições verticalizadas, o uso de métodos não invasivos e não farmacológicos para alívio da dor, o contato direto precoce entre mãe e filho e o apoio ao início da amamentação na primeira hora após o parto. Além disso, a escolha da mãe sobre o local de parto e o acompanhante é respeitada. A presença de um acompanhante, aliás, é um direito da mulher, tanto no serviço de saúde público quanto no privado.
A ANS também recomenda que todas as mulheres recebam apoio durante todo o trabalho de parto. Essa recomendação inclui: suporte emocional (como presença contínua de acompanhante, encorajamento, elogios); medidas de conforto físico (como massagem, banho para analgesia, ingestão de líquidos etc.); fornecimento de informações sobre a progressão do trabalho de parto e sobre formas de facilitar a sua evolução; e interlocução com a equipe, de modo a permitir a comunicação da mulher e a manifestação de suas preferências.
A ANS recomenda que todas as mulheres recebam apoio durante todo o trabalho de parto, o que inclui suporte emocional e medidas de conforto físico
No entanto, segundo Daphne Rattner, não é isso exatamente o que acontece. “Há umacultura institucional de desrespeito e abusocontra as mulheres durante o parto. Além disso, os profissionais que adotam essa abordagem humanizada são marginalizados na classe médica.”
Muitas mulheres que optam por partos naturais já passaram por experiências desagradáveis em partos anteriores e querem fugir das intervenções desnecessárias. Foi o caso da jornalista Deborah Trevizan, mãe de três filhos, um nascido de cesárea, um de parto normal hospitalar (depois de uma transferência de um parto em casa) e um de parto domiciliar – que, para ela, foi o parto ideal. “Na minha primeira gestação, não tinha a menor ideia sobre partos humanizados, índices de cesáreas. Eu queria ter um parto normal, só isso. E achava que seria simples assim. Quando cheguei ao hospital e tive todos os meus direitos desrespeitados, percebi o quanto fui ingênua.”
Um estudo realizado no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro avalia que as gestantes parecem apenas aderir, muitas vezes contrariadas ou sem o menor entendimento das condutas, às prescrições técnicas dos profissionais de saúde. Mas a pesquisa também ressalta que, em um cenário de desinformação, mesmo as práticas humanizadas podem se tornar fonte de violência e desrespeito contra a mulher, se estiverem desconectadas de seu contexto socioeconômico.
Portanto, é fundamental garantir que a mulher tenha informações completas, seguras e corretas sobre a assistência ao nascimento de seu filho durante a gestação, o trabalho de parto e o parto, de forma a permitir que ela faça suas escolhas de modo consciente e compreenda as eventuais determinações médicas. Só assim será possível combater abusos e torná-la protagonista desse momento tão especial.
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