terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Um novo olhar para o nascimento: O Parto Domiciliar



Foto: google

1. Contextualizando o cenário obstétrico atual

A Organização Mundial de Saúde (OMS) (1) afirma que a mulher deve dar à luz no local onde se sinta mais segura e no nível mais periférico onde a assistência adequada for viável e segura. Assim, no caso de uma gestante de baixo risco, este local pode ser a sua casa, uma maternidade ou um centro de parto de pequeno porte, ou talvez a maternidade de um hospital de maior porte.
A OMS recomenda que a proporção de partos por cesariana não ultrapasse os 15%, posto que este procedimento amplia os riscos para a mãe e para o bebê (1,2). Esta determinação está fundamentada no preceito de que apenas 15% do total de partos apresentam indicação precisa para a cirurgia, ou seja, apenas nesta porcentagem existe uma situação real onde é fundamental para preservação da saúde materna e/ou fetal que aquele procedimento seja realizado (1).

No Brasil, assim como em outros países do mundo, esses índices têm sofrido um crescente aumento com o passar dos anos, transformando a cesárea no “padrão ouro” da assistência obstétrica.
A significativa elevação das taxas de cesariana é um fenômeno mundial. Os países europeus passaram por uma rápida elevação dos índices nas duas últimas décadas (3), mesmo em países que apresentavam taxas muito baixas de cesárea. Na Itália, por exemplo, a taxa de aproximadamente 20% de cesárea em 1990 elevou-se para 33,2% em 2000 e para 38,4% em 2009 (3-4). Observa-se o mesmo fenômeno na Bélgica, em que as taxas passaram de 10,5% em 1990 para 15,9% em 1999, aumentando progressivamente até 17,8% em 2004 (3).
Muitos são os motivos que podem ser elencados para justificar esse fenômeno no decorrer dos anos: maior valor pago pelo procedimento de cesárea do que pelo parto normal; medo, por parte das mulheres, da dor do parto; crença de mulheres e médicos de que o parto normal afrouxa os músculos da vagina e interfere na satisfação sexual; crença infundada de que o parto normal é mais arriscado para o bebê; conveniência e economia de tempo para o médico; falta de qualificação do médico para a realização do parto normal; uso da cesárea para realização da laqueadura tubária; associação do parto vaginal à imprevisibilidade e do parto cesárea à segurança, entre outros (5).
Todos esses fatores foram progressivamente construindo um cenário propício à consolidação da cesárea como a melhor e mais segura forma de nascimento em nossa sociedade, instalando-se a chamada “cultura da cesárea”.
A dissolução desse conceito, portanto, tem sido o objetivo de medidas nacionais e internacionais, as quais incentivam o parto normal e humanizado. A desconstrução de paradigmas como esse, no entanto, é um processo lento, uma vez que envolve questões políticas e sociais profundas. 
2. Parto domiciliar: uma “nova” opção?
Diante desse contexto, compreende-se que optar e vivenciar um parto normal parece ser uma escolha cada vez mais difícil de se concretizar. O que, dizer, então, sobre a opção de vivenciar um parto natural, em casa, livre das intervenções de rotina desnecessárias e profundamente alicerçado no poder de escolha da mulher?
Atualmente no Brasil, as mulheres que optam pelo parto domiciliar são socialmente reconhecidas como inconsequentes, desinformadas, naturalísticas e adeptas de um modismo. Esta opção de nascimento tem sido vista com muito preconceito e até mesmo certa perseguição por parte de determinadas categorias de saúde. Haja visto os atuais acontecimentos envolvendo a tentativa de proibição por parte do CREMERJ (Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro) para que médicos não atendam as mulheres transferidas de partos domiciliares por possíveis complicações.
Tal fato demonstra que ainda são pouco compreensíveis, por parte da sociedade, os motivos que levam uma mulher a escolher o ambiente doméstico para parir, abdicando da tecnologia, da modernidade, do conforto e da suposta segurança que se encontra nos hospitais/maternidades atuais.
Essa forma de parir rompe com o modelo atualmente vigente, vinculado ao paradigma americano e que é caracterizado pela institucionalização do parto, pela utilização de novas tecnologias, pela incorporação de grande número de intervenções (muitas vezes desnecessárias), e que acaba por atender preferencialmente à conveniência dos profissionais de saúde (6).
Até o século XVIII o parto, um ritual de mulheres, não era considerado um ato médico e ficava a cargo das parteiras (5). Somente na primeira metade do século XIX o conhecimento e o atendimento dado às gestantes deu origem à especialidade de obstetrícia nas faculdades europeias (5,7). O que se percebe é que no século XIX houve uma ampliação considerável no campo da ação médica, propiciando as condições necessárias para a entrada do médico no meio familiar (7). Assim, no final do século XIX, os obstetras passaram a empreender campanhas para transformar o parto em um evento controlado por eles, o que se efetivou na metade do século XX (5).
A consolidação da presença do médico na cena do parto está associada à criação de um instrumental próprio e às práticas intervencionistas, associação esta usada para construir uma imagem de conhecimento científico, competência e superioridade dos médicos em relação às parteiras (8).
Com a incorporação do parto à prática médica, mudou também o cenário em que o mesmo era realizado. Dessa forma, a medicina introduz o hospital como local ideal para o nascimento, com cada vez mais recursos disponíveis (6), extinguindo, aos poucos, o evento do parto em domicílio.
A criação de hospitais específicos para a realização do parto – as maternidades – foi um evento do fim do século XIX. A construção de maternidades objetivava criar tanto um espaço de ensino e prática da medicina como um lugar onde as mulheres sentissem segurança para parir (5).
A mudança do parto doméstico, assistido por parteiras, para o parto hospitalar, conduzido por médicos conferiu à assistência obstétrica novos significados. De evento fisiológico, feminino, familiar e social, o parto e o nascimento transformaram-se em um ato médico, no qual o risco de patologias e complicações se tornou a regra e não a exceção. Assim, instaura-se o modelo tecnocrático de assistência ao parto (5).
Neste modelo, predominante na assistência obstétrica atual brasileira, o corpo passa a ser compreendido como máquina e a assistência prestada como linha de produção (5).
No que diz respeito à assistência ao parto dentro do modelo tecnocrático, o hospital torna-se a fábrica, o corpo da mãe a máquina e o bebê representa o produto de um processo de fabricação industrial. A obstetrícia passa a desenvolver ferramentas e tecnologias para a manipulação e melhoria do processo inerentemente defeituoso do nascimento, caracterizado pelo sistema de linha de montagem industrial (9).
O parto medicalizado e hospitalar torna-se sinônimo de modernidade, segurança e ausência de dor (5).
Dessa forma, este modelo 1) elimina a mulher como sujeito do parto e coloca o médico nesse lugar, cabendo a ele a autoridade, responsabilidade e a condução ativa do processo; 2) não reconhece como legítimas as situações nas quais o ambiente externo e o estado emocional da mulher atuam dificultando ou facilitando o trabalho de parto e o parto; 3) determina e facilita a atuação intervencionista do médico quando o mesmo achar apropriado; 4) supervaloriza a utilização de tecnologia; 5) aliena o paciente, em relação ao profissional e  6) direciona o sistema para o lucro (5,9).
Assim, compreende-se que dentro do modelo tecnocrático de assistência ao parto, só existem duas alternativas para a parturiente: um parto vaginal traumático, pelo excesso de intervenções desnecessárias, ou um parto cirúrgico, a cesariana (5).
Algumas mulheres, cientes e conscientes dessa situação, partem em busca de outra realidade, de uma nova forma de parir. Inseridas nesse contexto, uma pequena e crescente parcela de mulheres têm se interessado e planejado seus partos em domicílio.
Como reação à fragmentação e a despersonalização da assistência hospitalar durante o parto, o parto domiciliar planejado é uma modalidade que vem se ampliando nas regiões urbanas brasileiras (10), mas que, infelizmente, ainda está restrita a uma pequena classe social que pode arcar com os custos de todo evento, já que essa modalidade de assistência, apesar de reconhecida pelo Ministério da Saúde, ainda não é oferecida pelo Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil.
Em países como a Holanda, o Canadá e a Austrália (11), o parto domiciliar é um evento não somente reconhecido, como também estimulado pelo Sistema Público de Saúde. Isso porque, nestes países, o parto domiciliar é reconhecido como uma modalidade de assistência tão segura quanto o parto hospitalar; se mostra como uma experiência mais satisfatória às mulheres e suas famílias e, acima de tudo, se apresenta como um serviço potencialmente menos oneroso ao Estado. Essas questões compõem o cerne das justificativas para que o Governo apoie e incentive a realização do parto domiciliar em países de primeiro mundo.
Para as parturientes usuárias do serviço público de saúde no Brasil, é possível encontrar algumas opções de assistência menos intervencionistas em Casas ou Centros de Parto Normal, as quais, por sua vez, existem em apensa algumas cidades brasileiras e passam por grandes dificuldades para manter funcionante esse tipo de assistência.
A casa como lugar de nascimento volta, então, a fazer parte do cenário urbano contemporâneo. Trata-se, contudo, não apenas de uma mudança de endereço, mas de uma mudança que envolve uma série de novos comportamentos, valores e sentimentos quanto à maneira de dar à luz que vêm sendo tecidas no seio destas coletividades (12). Trata-se de uma mudança de paradigma.
A maioria dos médicos e de outros profissionais de saúde acredita fortemente que os partos hospitalares são mais seguros que os partos em domicílio. Essa opinião, compartilhada por muitas mulheres grávidas, pode ser parcialmente decorrente dos maus resultados perinatais dos partos domiciliares precipitados e não planejados, que incluem alta proporção de bebês pré-termo e de baixo peso ao nascer. Entretanto, essas infelizes estatísticas não se aplicam aos partos domiciliares planejados e de baixo risco, atendidos por cuidadores com experiência, com o apoio de um sistema de saúde hospitalar (13).
A escolha pelo local de parto deve ser individual e respeitada. As mulheres que optarem pelo parto em casa planejado não devem ser impedidas de vivenciá-lo (13).
No entanto, essa escolha deve ser tomada de forma consciente e após o conhecimento da mulher e de seu companheiro (ou acompanhante) de todos os riscos/benefícios do parto domiciliar. É de suma importância que se respeitem os critérios estabelecidos para que o parto domiciliar possa acontecer (gravidez de baixo risco, localização com fácil acesso a um hospital e presença de um meio de transporte no caso da necessidade de uma transferência). O não atendimento desses critérios pode colocar em risco tanto a saúde da mãe quanto a do bebê, gerando um resultado desfavorável para todos (14-15).
Apesar de representar uma pequena parcela dentre o total de partos, o parto domiciliar tem sido alvo de grandes discussões na mídia, nas redes sociais e entre os conselhos de diferentes categorias profissionais. Paralela a estas discussões, a literatura científica internacional tem apresentado estudos (16-24) com resultados obstétricos e perinatais semelhantes quando comparados os locais de parto, o que tem contribuído para desmascarar a vigente concepção de que o parto domiciliar oferece maior risco para mãe e bebê.
Esses estudos demonstram que o parto domiciliar está associado a baixas taxas de intervenções obstétricas (16-21) e não há aumento nas taxas de mortalidade perinatal (16, 18-22, 24), assegurando que o parto domiciliar de baixo risco, planejado e assistido por profissionais capacitados apresenta resultados favoráveis e pode ser considerado tão seguro quanto o parto hospitalar (17, 20-23).
As pesquisas nacionais, embora ainda escassas, apresentam resultados semelhantes a maioria dos estudos internacionais com relação a mortalidade materna e perinatal (25,10).
O parto domiciliar está inserido em um modelo de assistência denominado humanizado e vinculado ao paradigma europeu (6).  Este modelo vem orientando as políticas públicas e as normativas governamentais no Brasil desde 2000 e tem enfrentado inúmeros embates para a sua implementação (5).
A mais recente estratégia do Ministério da Saúde que visa melhorar a qualidade da assistência obstétrica no país se denomina projeto Rede Cegonha. O programa visa à implantação de um novo modelo de atenção ao parto, ao nascimento e à saúde da criança, garantindo acesso, acolhimento e resolutividade para se reduzir as taxas de mortalidade materna e neonatal. Prevê a construção, em escala nacional, de Casas e Centros de Parto Normal em que as mulheres deverão ser atendidas por enfermeiras obstetras (26). Assim, programas de residência em Enfermagem Obstétrica também têm sido incentivados pelo Ministério, a fim de capacitar os profissionais que entrarão em cena neste novo modelo de assistência.
Nesse modelo de assistência são resgatados valores como o protagonismo, a individualidade, a privacidade e a autonomia de cada mulher. Envolve práticas cujo objetivo é promover partos saudáveis, eliminando-se as intervenções desnecessárias e oferecendo aquelas comprovadamente consideradas benéficas. O modelo de humanização do parto pressupõe que segurança não é sinônimo de intervenção e tecnologia. Ao contrário, pressupõe a mínima utilização de intervenção no processo fisiológico de nascimento (5). Assim, privilegia-se o bem-estar da parturiente e de seu bebê, acompanhando o processo de parturição da forma menos intervencionista possível, já que se faz uso da tecnologia de maneira apropriada (6, 15).
Optar por uma assistência que respeite o corpo humano, não interfira em seu ritmo e leve em consideração as possíveis interferências, positivas e negativas, do estado emocional, psicológico e espiritual durante o processo de nascimento parece coerente. No entanto, poucas mulheres e profissionais de saúde têm se preocupado com esses aspectos, embora os Estudos em Saúde Primal (Heath Primal Studies) já tenham apresentado, há muito anos, as correlações existentes entre o modo de nascer e diferentes desvios de comportamentos na vida adulta (27).
Em suma, o parto em domicílio é uma modalidade de assistência solidificada no sistema público de saúde de países desenvolvidos, tais como a Holanda, Reino Unido, Canadá, Austrália, Suécia e Espanha. Esse fenômeno pode ser explicado pelo fato do parto em casa apresentar resultados satisfatórios, semelhantes aos encontrados na assistência obstétrica hospitalar, além de contribuir do ponto de vista econômico para o sistema de saúde, uma vez que é menos oneroso e dispensa gastos com internações, honorários, medicamentos entre outros.
No Brasil, o parto domiciliar planejado e assistido ainda é raro, embora as discussões sobre esta temática estejam ganhando cada vez mais espaço na sociedade e na comunidade científica.
Espera-se que, com o tempo, questões culturais e sociais a cerca do nascimento tomem diferentes rumos em nossa sociedade e que, com ajuda dos trabalhos científicos que estão sendo desenvolvidos na área, o parto e o nascimento possam vir a ser compreendidos como um momento de profunda transformação para a mulher, como um ritual de passagem e um momento sagrado para todos os seres envolvidos e, por isso, receba o devido cuidado e respeito que merece.

Fonte: http://www.ongamigasdoparto.com/2012/12/um-novo-olhar-para-o-nascimento-o-parto.html

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